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Histórias de Outros Carnavais

Limitar a história do carnaval de São Miguel Arcanjo somente aos salões do Clube Recreativo “Bernardes Júnior” é amputar a história dessa festa popular. Pode sim, e deve colocar o palaciano Bernardes Júnior como o templo das tradições momisticas onde se reuniam os foliões e de onde saia o desfile pelas ruas da cidade. Um tempo remoto quando as folias carnavalescas não eram bem vistas pela sociedade tradicional atrelada aos preceitos e dogmas do catecismo católico. Estudiosos dessa festa popular até hoje se divergem quanto a origem do carnaval. Para alguns, a palavra vem de “carrus navalis”, frase latina referente aos alegóricos carros navais, os quais faziam a abertura das Dionísias Gregas. Era uma espécie de abre alas do século VI antes de Cristo. O papa Gregório I no ano de 590 transferiu essa ofegante epidemia, como disse Chico Buarque, para o início da quaresma. Outros pesquisadores acreditam que o carnaval do papa Gregório I era a permissão para se comer carne antes dos quarenta dias de jejum que antecedem a Semana Santa.
    Em São Miguel Arcanjo essa festa popular chegou antes do tenente Urias no bairro São Miguel do Turvo, que antecedeu a Fazenda Velha. A evolução da liberdade veio embutida nas brincadeiras de entrudo, como denominou o português colonizador essa alegria geral, para não ficar em desacordo com as normas da igreja, a qual condenava terrivelmente essa festa pela libertinagem, lascívia e luxúria. O entrudo ganhou espaço primeiro nas zonas rurais do município com a participação de pessoas de todas as idades. Entretanto, o poeta Vital Fogaça de Almeida em sua obra intitulada “O Livro de Minha Mãe” publicada pela editora Revista dos Tribunais em 1961, tece comentário sobre festa carnavalesca no começo do século XX já estruturada conforme conhecemos. O poeta não faz menção ao entrudo e diz em seus versos: “No carnaval ao som de zé-pereiras/Toda a cidade enchiam de ruídos/Serpentinas, bisnaga, as traiçoeiras/Laranjinhas, confetes coloridos...” Não se pode afirmar onde esse carnaval acontecia, mas dá para perceber que se tratava de uma festa organizada e elitizada, totalmente oposta ao entrudo. O texto deixa uma vasta pista de que esse carnaval acontecia no clube durante o apogeu do algodão que São Miguel arcanjo experimentou. Pode até se arriscar ter esse fato ocorrido no ano de 1923, durante o nascimento do principal clube da cidade, antes da grande decadência do algodão em 1929. O entrudo pode caracterizar como sendo o Carnaval antes deste se tornar um símbolo nacional. Havia dois tipos: um folguedo de Momo que acontecia no interior das casas e entre amigos, o chamado “familiar” e outro que se espalhava pelas ruas, envolvendo o povo mais pobre e os escravos. Era o denominado “popular”. Se o entrudo familiar era uma brincadeira mais inocente, pois consistia basicamente em atirar limões-de-cheiro e jogar água no oponente, a coisa era bem diferente no chamado entrudo popular. Nas ruas, valia água suja da sarjeta, restos de comida, tinta, urina, enfim, tudo o que estivesse à mão era transformado as vezes até em arma pelos foliões. O histórico político sãomiguelense Cassiano Vieira, foi um carnavalesco nato. Enquanto viveu, incentivou o carnaval na cidade, realizando os brinquedos de entrudo. Nos anos 60, por falta de alegoria, Cassiano construiu bonecões de papel mascado semelhantes àqueles do carnaval de Pernambuco.O fato do escritor Fogaça de Almeida citar em sua obra o zé-pereira registra a existência de bloco carnavalesco na cidade no começo do século XX, levando em conta que esse cordão, que segundo alguns tem origem portuguesa, era acompanhado de zabumbas e tambores a guisa de uma escola de samba. Não se tem notícia sobre os Corsos, que eram carros abertos no qual as pessoas desfilavam. São Miguel daquele tempo possuía poucos carros de passeio. Apenas alguns pequenos caminhões para transporte e por isso nem se pensava em desfile de corso pelas ruas de terra.
                                   O CLUBE
    É impossível resumir 89 anos de história de uma agremiação, como o tradicional Bernardes Júnior. Esta sinopse serve para vislumbrar como foi o carnaval sãomiguelense noutros tempos. Conforme já foi dito, a sociedade participante das festas de Momo eram aquelas de idéias livres, alheias às pragas determinadas pela igreja para quem participasse dessa folia do inferno. São Miguel Arcanjo nem tinha como ficar fora dessa festa pois já havia a tradição da banda dos Terra, a qual tocava no coreto marchinhas que mexia com o povo. O batuque dos negros do Moinho foi referência no carnaval de São Miguel Arcanjo, mesmo não podendo esses músicos entrar no clube com seus blocos por serem de cor. Até meados de 1970, era proibida a entrada de pessoas negras nos salões dos clubes do Brasil inteiro. Por essa razão é que surgiram agremiações como o clube “13 de Maio” em Itapetininga e o “28 de Setembro” em Sorocaba. Os negros faziam um carnaval só para si com muito samba e muita ginga. Atrás do samba e do batuque do Moinho, brancos, ruivos e louros se miscigenassem numa só batida semelhante ao ritmo do coração. Nessa mesma época, membros da Colônia Sírio-Libanesa radicada na cidade não resistiram ao embalo contagiante do som verde-amarelo e botaram seu bloco na rua.
   Os anos pós-guerra vieram encontrar São Miguel Arcanjo numa boa situação econômica quase semelhante ao tempo do algodão por conta da Rodovia Sul Bandeirante que contribuía para o desenvolvimento econômico. A sociedade outra vez participava ativamente das promoções do Clube Recreativo Bernardes Júnior que nesse tempo possuía um minúsculo salão e um palco menor ainda na parte de cima. Entretanto, esse espaço exíguo não impedia a realização de grandes bailes organizados no salão emprestado do Hotel Ipiranga no apogeu das grandes orquestras, contando com o aval dos associados. No carnaval, era tempo dos lança-perfumes liberados. Uma mistura de essência forte e éter. As fantasias predominantes eram a de “Dominó”; por isso o folião mascarado tinha de  se identificar na entrada do salão. Não havia carnaval de rua. A ausência de um entretenimento que envolvesse a população fez com que a diretoria do clube criasse a Escola de Samba Fazenda Velha. Era um bloco de pessoas tocando instrumentos de percussão seguindo um estandarte vermelho escrito em dourado “Escola de Samba Fazenda Velha- C.R.“Bernardes Júnior”. Não foi fácil para o clube manter essa escola desfilando até o início dos anos 70, quando acabou de vez o agrupamento por falta da persistência dos componentes nos ensaios.
ARRECADAÇÃO PARA OS BAILES
    No embalo do carnaval, a família Rosa do Nascimento em 1962 decidiu criar um bloco entre os seus com a participação também de alguns vizinhos. Aproveitando o gancho de uma marchinha de carnaval daquele ano que dizia: “Quem nasceu Valete/ não se mete a Rei/No amor não vale trinca/Com a sorte não se brinca/ Mas eu brinquei...” seus componentes formaram um cordão representando as 40 cartas do baralho, causando grande impacto no salão do Bernardes Júnior. Na noite seguinte, o grupo da família Rosa trouxe a fantasia dos “Vassourinhas do Rio”  e na última apresentação, não se sabe se por falta de outra fantasia, entraram no salão envolvidos em tolhas cantando: “A minha fantasia é uma toalha/uma toalha e nada mais...” Foi sucesso total para um baile de carnaval até então insosso.
     A diretoria do Clube sempre esteve nas mãos de pessoas importantes dos meios políticos e sociais do município, os quais dispensavam um espaço de tempo para dirigir a agremiação. A grande aquisição do Clube Recreativo Bernardes Júnior nos anos 60, sem dúvida, foi o Ivan de Góes, eleito diretor de promoção da entidade. Ivan não mediu esforços para apresentar as melhores atrações em bailes históricos. Sua grande preocupação era os bailes de carnaval. Para isso, realizava o chamado Grito de Carnaval. Um no começo de janeiro e o outro em meados do mesmo mês para angariar fundos à fim de realizar um bom festejo de Momo. Grito de Carnaval, na realidade, era um baile que se seguia normalmente com a execução de musicas variadas até a meia noite. Após as doze badaladas do relógio da matriz, as valsas e boleros viravam músicas de carnaval e a marchinha varava a noite até as quatro horas da manhã. Foi pensando com antecedência no tríduo momistico, em 1968 Ivan realizou um baile de Réveillon sob as árvores do enorme quintal de sua casa, decorado com esmero para receber a família “bernardiana” e quem mais quisesse participar comprando uma mesa. A renda seria para aquisição instrumento para escola de samba e contratação de conjunto para as três noites. Além do Ivan de Góes, o Clube Recreativo Bernardes Júnior deve muito da sua animação à pessoas empenhadas com uma boa apresentação carnavalesca, tal como Antonio Galvão Terra, José Benedito Amgartem. João Luiz Martins, João e Miguel Ortiz que seguravam os três dias de folia, tocando sem parara da matinê até a noite, com a mesma garra.   
   Após a dissolução da Escola de Samba Fazenda Velha, não houve mais desfile pela rua da cidade, salvo alguns bonecões confeccionados pelo Cassiano Vieira e alguma arte alegórica de teor cômico criada pelo próprio Ivan de Góes para a data não passar em branco. O carnaval em São Miguel Arcanjo havia morrido. Por isso, certa noite o Osvaldino Meiga (Rayo) saiu dentro de um caixão de defunto puxado pelas ruas da cidade com um cartaz onde estava escrito: “Aqui jaz o carnaval de São Miguel Arcanjo”. Em 1975, um grupo de pessoas influenciado pelas idéias do José Antonio de Góes, do Rayo e do Itiro Akutsu decidiu reavivar o carnaval de rua na cidade. José Antonio de Góes buscou inspiração para confecção de fantasias em diversas escolas de samba da região e até pensou em alugá-las. Entretanto, com sua habilidade decidiu que os participantes que quisessem sair no desfile fariam a sua própria fantasia. Entrou no grupo o professor Carlos dos Santos Terra com idéias renovadoras para uma cidade que até então só conhecia a Escola de Samba Fazenda Velha. Esse pessoal criou o “Grupo Sabença” e estava a altura de concorrer com qualquer outra escola da região em qualquer quesito, desde porta bandeira e mestre sala, ala das baianas, alegoria e harmonia.
    Um outro grupo de pessoas reunido na casa do Zaquil Dias Tomás, o Jegue, decidiu que o povo da Vila Nova deveria também participar dessa festa popular. Com ajuda do empresário Jayme Tozzo, o saudoso Curiango criou as alegorias, tendo na bateria os filhos do Dito Jacó, sob a marcação do ritmo do José Gerson de Oliveira (o Gersinho). E naquele carnaval de 1975, além, do Grupo Sabença o povo da Vila Nova trouxe a  bela Laíz Aparecida Ribeiro no seu carro abre-alas e na pista, a ginga da passista Ivani Nogueira, numa demonstração de que o carnaval é a única festa folclórica na qual o povo pode participar sem necessidade de regras. A grande surpresa foi que ao lado dessas duas grandes escolas, vinha a Zô Livre, cordão composto pela família Terra e Fogaça, o bloco Salve Maris, do Miguel Nogueira Machado e o cordão infantil dirigido pelo Anorim Hakim Tannous. A praça da apoteose era a mesma Tenente Urias de sempre onde havia um júri composto por autoridades. Com o passar do tempo, verificou-se que todos os anos as escolas vencedoras eram sempre as mesmas: primeiro lugar Sabença, segundo lugar Jegue, terceiro lugar Zô Livre. Dizem que essas notas repetitivas teriam sido um dos motivos do carnaval de rua acontecer até 1977, quando encerrou de vez as apresentações. Ao final do desfile todos os membros das escolas seguiam para o baile no Clube Recreativo Bernardes Júnior, o qual desde 1923 era o ponto de encontro e abrigo maior da sociedade são-miguelense, agora muito mais diversificada. Ninguém mais se lembrava dos sermões inflamados da igreja contra o carnaval e a recusa do padre em aspergir um na quarta-feira um pouco de cinza nas cabeças onde houvesse um confete enroscado.
   Nos anos 80 houve uma pequena multiplicação de salões para a realização de bailes carnavalescos. O Melquiades Álvares Pessoa promoveu o seu carnaval no salão do Botafogo ainda em construção e o antigo cine São Miguel afastou suas carteiras e fez na frente da tela uma pista de dança. Em 1984 algumas escolas de samba tentaram vencer o marasmo, mas não conseguiram. Permanecia na pista apenas o pessoal do grupo Zô Livre e o Anorim com seus meninos. No final dos anos 90 a cidade parece ter retomado sua vocação. A princípio, alguns blocos tímidos, mas nestes últimos tempos os familiares do saudoso Lázaro Pereira, entre eles o pessoal da Penha, tem apresentado um bom, espetáculo de excelente qualidade.     
NO MEIO DA MULTIDÃO
·                         Não há dúvida alguma. O Clube Recreativo Bernardes Júnior foi ao longo desses 89 anos o coração pulsante do carnaval de São Miguel Arcanjo. Todos os blocos e cordões se formaram em torno dele e convergiram para ele ao apito final, ou mesmo para a última marcha rancho saideira, quando a terça feira chamava pela quarta feira de cinzas para tudo se acabar até o próximo ano. As históricas festas animadas por conjuntos no salão no segundo andar e mesmo no novo salão inaugurado no começo dos anos 60 pela administração que conservou a arquitetura do clube como marco histórico da cidade, o qual depois, ao longo dos anos, passou a ser freqüentado por jovens, adultos e idosos, muitos inclusive da mesma família. Uma época de glamour e romantismo, situada especialmente nas décadas de 1950 e 1960, não foi vivida apenas pelos foliões daquele tempo, mas está na mente das gerações que vieram depois num dos mais imponentes clubes do Interior. Hoje há um trabalho de resgate do brilho e empolgação envolvendo os responsáveis pelo Bernardes Júnior e o cidadão na valorização da sua casa de espetáculo. Dançou-se e brincou-se tanto nos salões Bernardes Júnior – batizado por nós como “Palaciano” por causa da sua imponência, além de reunir a fina flor da elite sãomiguelense. Certa feita num carnaval faltou luz – o que não impediu a festa noturna, embalada por instrumentos sem amplificação e iluminada sutilmente por quatro lampiões à gás. Pois é... Como é bom relembrar bons e velhos tempos, principalmente de forma tão bem retratada. São tempos que não voltarão mais e, se não houvesse trabalhos como este, seriam esquecidos, quem sabe por mais 89 anos.

Orlando Pinheiro

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